Há semelhanças entre a construção de um texto e a preparação para uma viagem? Muitas, segundo a escritora e colunista da Companhia das letras Carol Bensimon.
“Daqui a um mês, eu vou estacionar o carro alugado em uma cidade de seis ou sete ruas em Sierra Nevada e entrar arrastando minha mala em uma casa de madeira do século dezenove, onde haverá um quarto reservado para mim a 49 dólares e 90 centavos a noite, quarto 3, the cowboy room. A proprietária vai gostar de falar um bocado e talvez eu fique satisfeita com isso, uma vez que vou estar há nove dias sozinha nesse país estranho, comendo burritos, tirando fotos, procurando sementes de cactos para levar para casa. Essa será a segunda semana de uma viagem que eu planejo há bastante tempo, digamos que uma versão mais simplificada e pé no chão da mítica travessia costa à costa; eu tinha que escolher um lado e então escolhi o oeste. Sem nenhuma dúvida eu escolhi o oeste.
É engraçado o quanto os preparativos de uma viagem se assemelham, no fim das contas, à construção de uma narrativa. A começar pelo traçado do itinerário, evidentemente. Quando decidi trocar o sem-dúvida-embasbacante Grand Canyon por uma pequena cidade ao sul de Tucson chamada Bisbee, isso varreu uns bons milhares de turistas do capítulo Arizona e deu uma cara mais Wim Wenders à minha jornada. Bisbee, pelas fotos, me lembra algumas cenas de Estrela Solitária (Don’t come knocking), embora eu saiba que elas foram gravadas bem longe dali, em Butte, Montana.
Eu também estava pensando em narrativas quando fui escolher a ordem das cidades a serem visitadas. Jeffrey Eugenides é um excelente escritor, mas você já leu aqueles inícios dele? Ele são mais do que bons, são um primor. Queria o primeiro parágrafo de Middlesex para mim, assim como as páginas iniciais de Virgens suicidas. É preciso caprichar muito no início de um livro, e o mesmo para viagens. Um começo desastroso pode comprometer todo o andamento da exploração. Foi por isso que eu decidi não começar por Los Angeles. Seria como alguém vir ao Brasil e ir para São Paulo antes do Rio de Janeiro. Quero dizer, Los Angeles deve ser uma cidade difícil, e você precisa entender um pouco sua complexidade para efetivamente apreciá-la. De modo que San Francisco me pareceu um primeiro passo mais suave. Não há erro quando se trata de casas vitorianas e bondes e pequenas livrarias e aqui-viveu-Allen-Ginsberg.
Eu reservei hotéis. E eu os reservei baseado no meu imaginário de Estados Unidos, que foi construído por um tanto de livros e um tanto de filmes e um tanto de country music, portanto eu não dei bola se não havia micro-ondas no quarto (algumas pessoas no tripadvisor ficam meio obcecadas com isso) ou qualquer outro tipo de mordomia. Eu não tenho nem tevê em casa. Estou lendo Jack Kerouac, On the road. Eu sei, isso é um clichê.
O fantástico sobre uma viagem futura é que você não sabe exatamente o que vai acontecer, e mesmo assim não tem nenhuma dúvida de que lembrará dela para sempre. Elas são cheias de aventura e estranhamento e, caso você não seja uma pessoa que viva um cotidiano de noites viradas e mil e uma confusões com mulheres fatais e gin tônica e danças mirabolantes, o que é exatamente o meu caso, é grande a chance de que esses episódios sejam os pequenos diamantes da sua existência. Portanto é fundamental que você resista a tirar uma foto sorrindo diante de um monumento só pra dizer que esteve lá, como alguns erguem os celulares em um show do Paul McCartney para terem uma imagem tremida e com áudio muito ruim em vez de sentirem o que quer que seja, ali, no momento do show. É fundamental você perder alguma coisa imperdível (segundo o guia de viagem), e então achar o que nem sabia que estava procurando.”
(Texto publicado no blog da Companhia das Letras em 11/05)